Modos de ser leitor
Prefácio

Jean Foucambert
(tradução : Suzete Bornatto e Lucia Cherem)


 

O que significa ler algo ? A resposta é imensamente mais complexa do que poderia sugerir uma primeira reação, um reflexo automático de alguém tomado de surpresa por uma pergunta tão primária. Pensemos, inicialmente, numa página de um simples jornal diário impresso. Ler tal página, é óbvio e ululante, significa decodificar, interpretar, dar um sentido ao noticiário, aos comentários, aos artigos ali expostos. Sim, OK, está certo. Mas como decodificar, interpretar, dar um sentido ao texto ? O que, exatamente, o leitor mobiliza nessa tarefa, além da mera capacidade técnica de juntar caracteres e com isso formar palavras, sentenças, parágrafos ? Aí apenas começam os problemas. Para exemplificar um pouco mais concretamente o tipo de desafio colocado para o leitor, vamos imaginar que exatamente a mesma notícia – digamos, um crime cometido por fulano, no bairro do Capão Redondo, considerado um dos mais violentos da capital paulistana -, é reproduzida com o mesmo texto, com todas as vírgulas e pontos, em dois jornais com enfoques distintos. O primeiro jornal é do tipo sensacionalista. A notícia sobre o crime do Capão Redondo é dada com um título daqueles que “pingam sangue”, ao lado de outras notícias igualmente ou mais tenebrosas, e sustentada por colunas de comentaristas que pressagiam o fim da civilização em meio ao caos produzido pela violência urbana. O outro jornal tem um enfoque distinto: dá a mesma notícia em seu contexto social concreto, oferecendo ao leitor outras reportagens que mostram o que é a vida no Capão Redondo, com a falta de emprego, a carência de escolas e de estrutura sanitária e de saúde pública, etc. O crime aparece, aí, não como uma “maldição” ou inevitabilidade histórica, mas como um resultado de um fenômeno que pode ser combatido mediante a adoção de políticas públicas. O mesmo texto, com todas as vírgulas e pontos, adquire significados completamente distintos, dependendo do contexto em que é apresentado.
“Ler” a notícia sobre o crime do Capão Redondo, tarefa que inicialmente parecia tão fácil e imediata, agora já pressupõe a capacidade de interpretar o contexto em que a notícia é dada. Isso permite supor que a qualidade da leitura depende da capacidade crítica que o leitor pode mobilizar – referências culturais, históricas, políticas, literárias etc. -, com o objetivo de dar ao texto a sua devida dimensão, colocá-lo no seu devido lugar.
Mas, para tornar o problema um pouco mais complexo, nem sempre as coisas são tão explícitas como no caso do Capão Redondo, em que basta comparar dois jornais com linhas editoriais distintas para revelar as armadilhas criadas pela contextualização da notícia. Vamos nos reportar, agora, à cobertura que os maiores jornais e revistas do Brasil fazem dos movimentos sociais, em particular do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra): há um consenso, entre tais veículos, sobre o fato de que o MST é “baderneiro”, “subversivo”, “anacrônico”. Tudo isso se traduz na utilização de um verbo que, invariavelmente, descreve as ações do MST no campo : invadir. O MST nunca “ocupa” um latifúndio; ele sempre “invade”. Ora, há uma diferença brutal entre os dois verbos. “Invasão” pressupõe uma atitude avessa ao diálogo, é uma ação necessariamente violenta, desrespeita limites e fronteiras, desafia a ordem estabelecida. “Ocupação”, ao contrário, sugere uma ação gradual, amena, situada nos marcos do entendimento. Pouco importa, para tais veículos, que as ações do MST sejam amparadas pelo texto constitucional (que condena o latifúndio, especialmente o improdutivo) e que a prática de ocupação seja uma forma legalmente legítima de um movimento social qualquer apresentar as suas reivindicações ao conjunto da sociedade.
Como fica o leitor diante disso ? Ele é, em primeiro lugar, “bombardeado” pelo consenso entre os grandes veículos : o MST é um perigo para a sociedade. Ao leitor é oferecida uma única descrição da realidade : o MST “invade” a propriedade alheia. Como ele poderá, nesse caso, escapar ao “consenso fabricado” (expressão muito utilizada por Noam Chomsky, autor mundialmente conhecido por suas posições críticas em relação à mídia), e tirar as suas próprias conclusões ? A coisa toda, nesse ponto, começa a ficar muito mais difícil. E se deixarmos apenas o âmbito nacional, para nos debruçarmos sobre os grandes assuntos mundiais, aí então veremos que o leitor pisará em campo totalmente minado. Os iraquianos que lutam para defender o seu país contra o invasor estadunidense são, invariavelmente, qualificados como “terroristas” ou, no melhor dos casos, “insurgentes” ; os palestinos que lutam pelo direito a ter o seu próprio estado são descritos como “agressores” ou “terroristas”, ao passo que os israelenses que ocupam ilegalmente os territórios palestinos apenas exercem o seu direito à legítima defesa” ; governos latino-americanos apoiados por camponeses e povos originários são descritos como “populistas” e “atrasados”, ao passo que os subordinados ao capital financeiro são elogiados como “modernos”, “eficientes” etc. Se já é suficientemente difícil a tarefa de desmontar os meandros da comunicação impressa, temos ainda que considerar o fato de que o leitor é também exposto à comunicação oferecida pela televisão e pelo cinema, por muitos comunicólogos qualificada como “comunicação total”, por afetar simultaneamente todos os sentidos do corpo, em comparação com o estímulo relativamente limitado oferecido pelo texto (por exemplo : se leio no texto algo referente ao Palácio do Planalto, sou levado a imaginar o dito cujo, baseando-me em informações prévias armazenadas no meu cérebro ; já o telejornal “mostra” o Palácio do Planalto, de modo que sou levado a crer que, de certa forma, o “conheço”, por me ter sido apresentada a sua imagem). A “comunicação total” tem tal poder de convencimento que, em 1991, conseguiu emplacar em todo o mundo a mirabolante versão segundo a qual “ninguém” teria morrido na Guerra do Golfo, pois os Estados Unidos teriam utilizado as tais “armas cirúrgicas”, capazes de acertar precisamente o alvo, sem causar destruição desnecessária. Sabemos, hoje, que pelo menos 150 mil “ninguéns” morreram naqueles quarenta dias e noites de bombardeio ininterrupto sobre Bagdá. Pois bem, o pobre leitor que então abrisse as páginas dos jornais para tomar conhecimento das notícias sobre a Guerra do Golfo, já tinha armazenadas em seu cérebro as imagens de inofensivo vídeo-game vasta e generosamente difundidas pela televisão (graças, principalmente, aos inestimáveis serviços prestados pela CNN).
Isto é, já leria as notícias a partir de um conhecimento prévio fabricado por métodos absolutamente inescrupulosos e divulgado pela rede planetária de comunicação áudio-visual, incluindo a indústria cinematográfica (naquela época, como até hoje, e talvez cada vez mais, Hollywood apresenta, invariavelmente, os árabes e muçulmanos como fanáticos terroristas, tornando-os quase sinônimos, e portanto predispondo o imaginário coletivo a um julgamento prévio dos “lados em conflito”). Qual era, então, a real capacidade de o nosso leitor “ler” o noticiário, se atribuímos à leitura um significado que não se limita à técnica de juntar letrinhas ? Xiiiii...
Voltamos, então, à nossa pergunta inicial: o que significa ler algo ? Mesmo sem ainda conseguirmos responder plenamente, podemos, no mínimo, afirmar que ler algo é sempre um ato determinado por complexos condicionantes políticos, culturais, econômicos e ideológicos. Em primeiro lugar, porque esse algo que se lê é produzido por alguém interessado (por exemplo, pelos jornais anteriormente mencionados), segundo determinadas concepções (políticas, econômicas, sociais), e exposto no âmbito de contextos específicos. Além disso, aquele que lê também é, ele próprio, formado por determinado ambiente político, social, cultural, ideológico. Ler algo, portanto, faz parte de um vasto jogo de poder, que se inicia no momento do aprendizado da leitura, isto é, na escola.
O ato da leitura é um ato eminentemente político, como mostrou Paulo Freire, ao recusar a concepção da leitura como um mero ato de decifrar palavras e frases cujo sentido já está pronto e previamente definido, para transformá-la num ato de redescoberta do mundo, a partir da interpretação singular do texto pelo sujeito que o lê, ancorado em suas próprias experiências. Significativamente, a ditadura militar tratou de implantar o Mobral, nos anos 60 e 70, como um meio de se contrapor ao método de alfabetização proposto por Freire : a “alfabetização” criada pela ditadura mantinha o caráter técnico da decifração de códigos, assim preservando uma relação de alienação entre o adulto alfabetizado e o texto. Este, mantinha-se como algo estranho à experiência cotidiana, possuidor de um caráter quase mágico e desafiador aos seus olhos, “coisa de doutor”. Numa vertente que dialoga com as concepções de Freire, o educador francês Jean Foucambert afirma, sinteticamente, que “a leitura é uma prática social que preenche uma função de comunicação, mas sua aprendizagem, através da escola, é uma realidade social que permite uma seleção.” Quem opera a seleção ? Quais são os critérios mobilizados para tanto ? A quem interessa ? Essas e muitas outras questões são postas e respondidas na presente obra, traduzida pelas professoras Lúcia Peixoto Cherem e Suzete Bornatto, da Universidade Federal do Paraná. Foucambert, já conhecido por muitos educadores brasileiros, é uma figura pouco privilegiada nesse momento na França, apesar de suas grandes contribuições para a melhoria do nível de leitura no ensino público francês – afirmam as professoras -, pois grande parte da academia, para variar, está mais interessada em pesquisas internacionais de prestígio do que na participação direta no trabalho de base, ligado às práticas sociais comprometidas com a democratização real da sociedade.
A tradução e divulgação deste livro representa, por isso, uma grande contribuição aos que, na contramão do oficialismo acadêmico, reafirmam o seu compromisso com o ensino como um gesto vivo, uma renovação do permanente compromisso de valorizar o humano naquilo que é humano. Foucambert, como Freire, produz pura subversão. A aquisição de conhecimento, para ele, deve ser necessariamente transformadora da realidade, ou não terá significado algum. Daí que “tornar-se leitor”, idéia motriz da presente obra, implica adquirir consciência de si e do mundo, significa tornar-se sujeito de suas ações, responsável pelo seu próprio destino. Tornar-se leitor, nessa perspectiva, é ser capaz de articular a “palavra-mundo” proposta por Freire. Rejeitar a passividade imposta aos (tele)espectadores pelas máquinas hipnóticas de produção de consenso e articular a rebeldia. Tornar-se leitor é, sobretudo, um imenso e permanente desafio.

 


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